domingo, 4 de setembro de 2011

o dia que fui para no hospital por arrumar minha cama

 mais um post do hoje e um bom dia...gente confiram o blog do cara é muito bom.
Era uma sexta feira, meu dia de folga. A namorada estava no trabalho, meu irmão sairia pro dele em poucos minutos, e em breve a casa repousaria no mais profundo silêncio e paz. O almoço já havia sido preparado horas antes pela muié, era o ambiente perfeito pra um cidadão passar um dia inteiro sem fazer coisa alguma, perambulando preguiçosamente pela casa trajando as cuecas do dia anterior.
Após pular pra mesa do computador e chamar todos os twitters que me seguem de fags (minha costumeira rotina matutina), dei uma olhada ao redor do quarto e decidi que a profunda bagunça que envolvia cada centímetro quadrado do ambiente estava me incomodando um pouco. Meu quarto está preso numa estranha dimensão paralela em que, a despeito de qualquer esforço de limpeza, o nível de entropia é sempre máximo.
Roupas espalhadas pelo chão, cama desfeita, peças de computador e cartas de Magic embaixo da TV, livros jogados aos cantos, action figures empoeirados da mesa do meu computador, toalhas penduradas na maçaneta, incontáveis balinhas de armas de pressão e inexplicáveis pecinhas de LEGO embaixo da cama e em suas adjacências, que eu insisto em pisar em cima. Já pisou descalço numa pecinha de LEGO? Não é exatamente a melhor sensação do mundo.
Por mais que tentemos arrumar o quarto, é uma questão de minutos até que esteja tudo bagunçado mais uma vez. É uma luta perdida.

E isso é o que dá pra considerar “arrumado”
Então tentamos nos acostumar a dormir no meio da desordem. Naquele dia entretanto, num raro exercício de lógica altruísta, decidi que minha namorada já trabalha bastante arrumando a minha parte da bagunça, lavando minhas roupas e fazendo minha comida. Resolvi por a preguiça de lado temporariamente e tentar domar a bagunça perene dos nossos aposentos, como forma de agrado à namorada – uma boa ação que ela provavelmente recompensaria com sexo, que é (vamos ser sinceros) o único motivo pelo qual um homem faz qualquer coisa pra uma mulher que não seja sua mãe, irmã ou avó.
“Eu não estaria realmente arrumando o quarto”, pensei com meus botões, “e sim investindo no entretenimento futuro”.
Mal sabia eu que 30 minutos mais tarde essa decisão tão trivial me colocaria dentro de uma ambulância, imobilizado numa maca, inalando gás analgésico com uma intravenosa enfiada nas costas da mão.

Antes que eu continue a narrativa, xeu compartilhar uma epifania que tive durante a situação que estou prestes a contar pra vocês.
A vida é um constante aprendizado, algum famoso pensador (provavelmente morto, já que nunca ouvi falar de um sujeito vivo recebendo esse título) disse alguma vez. Cada dia traz uma importante lição.
Por exemplo, quando eu era moleque eu descobri que cutucar o nariz com muita força te ajuda a se livrar de sangue que você tem sobrando por aí. Uma outra coisa que eu aprendi quando era um garotinho é que dormir com um ventilador ligado bem rente à sua cara é uma ótima maneira de acordar completamente urinado.
Isso acontece porque aparentemente algumas pessoas perdem o controle da bexiga quando expostas a mudanças de temperatura durante o estágio de sono; o mesmo efeito pode ser atingido se você aumentar a potência do ar-condicionado no quarto de alguém durante a noite, ou se colocar a mão da pessoa numa tigela de água morna enquanto ela dorme. Tente com seus amiguinhos na próxima vez que eles dormirem na sua casa (ou não, caso você goste do seu sofá)!
Isso me ensinou outra lição – já viram quintais ou sacadas de apartamentos adornados com colchões encostados na parede? Então, esses colchões estão secando ao sol, pra diminuir o odor de mijo infantil que impregnou cada fibra do negócio. Aprendi que nestes domicílios mora algum moleque de 7 anos que ainda não descobriu a conexão da incontinência urinária com o ventilador na cara.
Nesta última semana que passou, eu aprendi uma lição valiosíssima. E você nem precisou ir pro hospital numa ambulância pra ganhar este conhecimento, eu fiz essa parte por você. Anote aí:
Caso você esteja fazendo algo embaraçoso ou complicado de explicar, verifique que nenhum acidente aconteça.
Guarde essa informação pra mais tarde, ela se fará relevante no texto.
Então, eu decidi que arrumar nosso quarto seria um bom agrado pra namorada, e pus-me à tarefa. A primeira coisa que eu faria é arrumar a cama. Note que quando você arruma a cama de um quarto bagunçado, a bagunça subitamente parece 50% menor. É psicologicamente agradável, já que apesar de mal ter começado você fica com a impressão de que você já está com meio caminho andado.
E aqui entra aquele conselhinho que eu te dei lá atrás.
Não sei quantos aqui arrumam a cama com este método (façam o favor de se pronunciar nos comentários, pra eu não me sentir tão estranho), mas eu costumo subir na cama com uma ponta do cobertor em cada mão e em seguida agitar os braços pra cima e pra baixo, espalhando a coberta igualmente ao redor da cama. Assim não é necessário dar voltas na cama puxando aqui e ali pra tornar a cobertura da cama homogênea.
É uma maneira que eu estive usando desde criança e, assim como técnica de limpar a bunda ou bater punheta, é o tipo de coisa tão pessoal e privada que não é como se você visse outras pessoas fazendo ou houvesse debates públicos sobre a predileção da maioria a uma maneira ou outra. Então eu segui minha vida felizmente sem saber que, aparentemente, meu método de arrumar a cama é a coisa mais bizarra que boa parte das pessoas já ouviram falar. Bom, ao menos as pessoas me socorrendo naquele dia.
Subo na cama, uso minha técnica pra distribuir partes iguais de cobertor a cada canto da cama e, com ar de satisfação que apenas um trabalho bem feito traz a um homem, bato a poeira fictícia da mão e desço da cama.
Acontece que essa última parte não aconteceu exatamente como eu planejava. Eu pisei no canto da cama, mas aparentemente havia menos cama lá do que eu calculei (devo processar os fabricantes da cama? Resposta: sim). Apenas metade do meu pé direito encontrou apoio no móvel, só que eu já havia colocado todo o peso do corpo nele.
O resto aconteceu muito rápido, é até meio difícil lembrar dos detalhes exatos. Meu pé escorregou em direção ao chão de forma inesperada, e corpo se inclinou pra direita seguindo a queda do pé. O quarto inteiro pareceu rodopiar ao meu redor.
Minha cabeça e meus ombros se enfiaram na parede mais próxima, e a essa altura meu corpo já estava num ângulo de 45 graus em relação ao chão. Com um pé ainda em cima da cama e a cabeça encostada na parede, meu corpo se tornou uma letra V maiúscula de cuecas. E finalmente minhas costas e bunda tocaram o chão, tornando o angulo da imaginária letra V ainda mais agudo. Quando isso aconteceu, ouvi um distinto CRACK vindo das minhas costas.
E veio a dor. Dor completamente lacinante, do tipo que te impede de se mover. Quem já sentiu dor forte nas costas deve entender do que estou falando.
Logo de pronto, me desesperei – o barulho que ouvi logo após da queda me dava a impressão de que eu devia ter quebrado alguma coisa. Fiz um esforço titânico pra me virar de bruços, as costas protestaram mandando uma onda de dor tão potente que certamente teria esvaziado meu intestino grosso caso houvesse algo pra ser esvaziado naquele momento. Pus a me arrastar no feito um soldado americano fugindo de vietcongs, locomovendo-me a passo de lesma em direção à porta do quarto do meu irmão. Era 7 ou 8 da manhã, ele deveria estar dormindo.
Meu deus, essa dor. A dor era tão tremendamente forte que eu posso admitir sem vergonha alguma que estava quase chorando de tanta agonia. Será que quebrei alguma coisa? Estou conseguindo mover minhas pernas? O choque da queda e a dor me impediam de notar movimento nas pernas. Comecei a contemplar uma idéia aterrorizante – e se eu danifiquei minha coluna?
Putaquepariu. Seria o método mais retardado na história da humanidade de alguém perder a habilidade de andar. Já pensou eu me confinar a uma cadeira de rodas pro resto da vida por ter CAÍDO DE UMA CAMA? Não deve ter havido maior self-owned na história documentada da raça humana.
Mentalmente, comecei a fazer uma checagem por ocasiões em que eu tirei onda de deficientes físicos. Um dos participantes da minha patotinha de escola era o David, que andava capengando por causa de um acidente de bicicleta, e não lembro de jamais ter zoado o infeliz. E até hoje nunca fiz piada com Christopher Reeves também, então minha conta kármica estava limpa. Soltei um suspíro de alívio – ou teria soltado, já que a profunda dor nas costas me impedia esses luxos respiratórios. Até o movimento do diafragma causava dor.
Agora eu consigo pensar no humor da situação, mas no momento não seria exagero dizer que eu estava completamente desesperado, sem quaisquer ressalvas. Na minha mente, eu havia fraturado a coluna, e estava fodidíssimo.
Diante da porta do quarto do meu irmão, com o nariz encostado no carpete e ofegando como uma mulher em parto, reuni as poucas forças que me restavam pra erguer o braço e esmurrar a porta dele. Puta que o pariu, mas que dor desgraçada. Parecia que um gigante invisível segurava meus braços com uma mão e minhas pernas com outra, tentando me partir em dois.
O moleque não respondeu. “Teria o desgraçado ido pro trabalho cedo hoje”, pensei afobado. O que diabos eu farei se estiver sozinho em casa? Esmurrei a porta de novo, berrando pro meu irmão ligar pro 911 imediatamente.
Pro meu profundo alívio, a porta de abre no meio da esmurrada, e o moleque olha pra baixo completamente confuso. Lá jazia seu irmão mais velho, se arrastando pelo chão de cuecas e a esta altura berrando de dor.
“911. Agora. AGORA! Rápido!”
“Mas que diabos?!”
“AGORACARALHOAHDDAUDIAHGILDUQHILHPELOAMORDEDEUSTÁDOENDO”
Meu irmão, ainda meio confuso, apanhou o celular e discou o número de emergência enquanto eu bufava de dor com a cara colada ao carpete do corredor. Ouvi-o descrevendo o acidente pra operadora, e respondendo as usuais perguntas (“a vítima está consciente? Está respirando? Tem problemas de coração? Está tomando medicamentos controlados? Tem alergias?”). Em seguida o moleque desligou o telefone e me avisou que a ambulância estava a caminho.
Um marmanjo de 24 anos ser socorrido por um time de paramédicos por ter caído da cama já é uma humilhação sem tamanho, pensei. Por que torna-la ainda maior trajando as cuecas de ontem – e nada além disso? Pedi pro meu irmão me apanhar calças e uma camiseta.
A camiseta foi relativamente fácil de vestir, mesmo deitado de bruços no chão. Pôr as calças, por outro lado, provou-se impossível. Qualquer movimento dos quadris resultava em dor perfurante, dor do tipo que eu não desejaria nem no meu pior inimigo. Ok, estou obviamente mentindo, mas você entende o que eu quero dizer.
A dor impedia completamente o ato de cobrir minhas vergonhas. Toquei o foda-se com toda solenidade e decidi que os paramédicos veriam minha semi-nudez em toda a sua glória. Minha esperança de manter um resquício de dignidade se foi.
Em mais ou menos 5 minutos a campainha toca e meu apartamento é invadido por uma pequena multidão de paramédicos. Tenho experiência em contatar os serviços de emergência no trampo (já assisti ao vivo um sujeito ter um ataque cardíaco e morrer no meio de um julgamento, aliás. Tentaram ressucitar o maluco com desfibrilador portátil e tudo. Fun fact – o corpo do sujeito não PULA quando é defibrilado, como nos filmes. Ao invés disso ele se contorce todo, as pernas chacoalham, as mãos se fecham), e as ambulâncias realmente VOAM em direção à emergência.
De bruços e com a cara colada no chão, a única coisa que eu conseguia ver eram os quatro pares de botas que haviam se reunido subitamente ao meu redor.
“Você é o Izzy?”
Desafiando a dor que já dificultava até a respiração, encontrei forças pra responder a pergunta dele. Pensei em fazer uma piadinha tipo “bom, até onde sei sou o único acidentado aqui”, mas imaginei que o cara poderia entender como hostilidade ou até mesmo como clássica filha da putice.
“Prazer, Izzy. Sou o Jeff, aqueles são o McKenzie, o Rob e o James. Tamos aqui pra te ajudar.”
“Oi, pessoal”, falei quase sussurando, com o rosto enfiado no chão.
Um dos caras, não sei qual (afinal eu nem tinha visto os rostos dos malucos) me perguntou como eu estava. Os caras pareciam bem humorados.
“Já estive melhor” falei, sem nunca afastar o nariz do carpete. Nunca estive tão próximo do meu carpete antes.
Eles riram. O sujeito à minha esquerda, que imagino que era o Jeff, depositou uma maletinha vermelha do meu lado. Enquanto ele removia alguns instrumentos dela, ele me pergunta:
“O que aconteceu aqui, Izzy?”
E contei a história da queda da cama.
“Você… caiu da cama?” perguntou o cara, incrédulo , enquanto prendia no meu braço um daqueles aparelhos de medir pressão sanguínea. Aqueles que você infla apertando uma bombinha e tal. Sei lá qual a conexão com machucar as costas e tirar a pressão sanguínea, mas ele tirou.
“É. Eu tava arrumando a cama.”
“Quantos andares tem a sua cama?”
Eu ri, com as costas protestando a cada expiração. O cara fez a leitura da minha pressão, falou que tava normal, tirou o troço do meu braço e pôs uma luva cirúrgica. Ele começou a apertar áreas aleatórias da minha perna, perguntando se eu conseguia sentir o toque dele. Respondi afirmativamente a todos os toques.
“Bom, você não arrebentou a coluna então. Mas se você está sentindo muita dor, vamos ter que te levar pro hospital pra fazer radiografias pra ter certeza do que aconteceu.”
“Ok”, respondi sem forças mas animado com a idéia de não me tornar um paraplégico.
“Você acha que conseguiria se levantar pra podermos te colocar na maca?”"Vamos ver”.

Tentei me virar como pude mas a dor era muito forte, literalmente de tirar o fôlego. Jeff pegou meu ombro e me ajudou a completar a rotação, me deixando agora de costas no chão. Minha cara não ocultou a dor que eu sentia, e notei um outro paramédico entregando um cilindro conectado a um tubo de plástico ao Jeff.
“Izzy, isso aqui é gás do riso. Ele vai te ajudar a ignorar a dor por um tempo, pra você poder se levantar e aí a gente te coloca na maca. Certo?”
Ele me entregou o tubo. Coloquei na boca, e ele me instruiu a sugar o gás profundamente. O tubo fazia um barulho esquisito quando eu puxava o gás.
“Pode puxar com bastante força. Você vai precisar de bastante gás pra ignorar a dor por alguns segundos enquanto te colocamos de pé.”
Acenei positivamente com a cabeça, com o tubo entre os dentes. O barulho que o tubo fazia era semelhante ao de um mendigo tentando pigarrear.
“Apartamento legal” falou o Jeff, olhando ao redor do meu domicílio.
“Valeu”.”Aquelas guitarras são suas?”

Puxei o gás mais uma vez, e depois falei com o tubo ainda na boca “Aham.”
“Você toca bem?”
Antes que eu pudesse responder, senti uma profunda tontura. Tentei responder e a voz não saiu. Quando finalmente saiu, o som da minha voz soava extremamente estranho, não sei como explicar. sabe quando você está falando alguma coisa e arrota no meio do discurso? E a tua voz meio que se mistura com o gás que está saindo e soa esquisita? Então, mais ou menos assim.
Eu parei no meio da palavra, e ele riu e explicou que era efeito do gás.
“Ok, vamos tentar te levantar agora” ele disse, pegando de volta o tubo do gás.
Ele me pegou pelos ombros mais uma vez e tentou me levantar. As costas doeram, eu alertei o cara através de um estridente berro, e ele me depositou no chão de novo.
“Ok, mais gás. Quando você estiver se sentindo chapado, nos avise.”
Experimentei drogas apenas duas vezes na minha vida, então não tenho bons pontos de referência pra quantificar a experiência de um barato. Como eu saberia que estou chapado o bastante pra tentar me levantar? Continuei chupando o gás, e o tubinho fazendo o barulho lá.
Três minutos depois, comecei a sentir uma experiência bizarra (minha namorada riu quando contei pra ela mais tarde). Eu comecei a visualizar meu corpo como uma forma geométrica, como um cubo, porém com uma das arestas amassadas. À medida que eu chupava o gás do tubo, eu “via” o gás preenchendo o interior do cubo, e desamassando a aresta de dentro pra fora. Em outras palavras, eu estava surtando.
Eventualmente removi o tubo e falei, com a voz novamente soando esquisita, que eu podia me levantar agora. O Jeff me levantou pelos ombros, e surpreendentemente a dor havia desaparecido. Assim que ele me soltou e eu me apoiei completamente por conta própria, notei que a dor ainda estava lá.
Os paramédicos me levaram pra fora do apartamento, onde uma maca me aguardava. Meu irmão nos seguia com uma trouxa de roupas, minha carteira e meu celular. Nisso aparece a namorada, que havia voltado do trabalho às pressas. Meu irmão havia ligado pra ela durante meu bate papo com os paramédicos.
A menina me vê de cuecas sendo amarrado numa maca e se desespera. Meu irmão explica a situação, e a ouço perguntar “…ele caiu da cama? Mas como diabos esse menino caiu da cama pra se foder desse jeito?”
O melhor da situação era que a vizinhança inteira havia ouvido as sirenes da ambulância e visto os paramédicos correndo pra minha casa, arrastando uma maca com eles. Deitado na maca, com o tubo de gás novamente na boca, eu notei que todos os nossos vizinhos observavam este que vos fala amarrado numa maca, de cuecas, enquanto meu irmão e minha namorada debatiam em voz alta a forma como eu me acidentei.
Sensacional.
Era a minha primeira vez dentro de uma amulância. Eu tinha uma experiência superficial com o ambiente, advinda dos filmes. Uma porrada de instrumentos médicos povoavam o interior o veículo – reconheci um desfibrilador portátil, aparelho que fui treinado a usar no trabalho. O desfibrilador estava montado numa base retrátil, que podia ser puxada pra fora pra coloca-lo mais próximo do paciente.
Havia um monte de gavetas cobrindo toda a área intera do negócio. Pra onde eu olhava, havia uma gaveta. Jeff abriu uma dessas, e puxou um pacotinho plástico. Havia uma mera semelhança com um embrulho de doce, e lembrei-me de quando eu ia no dentista e o cara me dava um pirulito.
Jeff não tinha um pirulito pra mim. Ele rasgou a embalagem e revelou um cáteter. Sua mão mergulhou na gaveta novamente, e voltou à minha vista com outro pacotinho. Ele rasgou o novo embrulho, e seu conteúdo era aquilo que é tão universalmente odiado quanto pizza de atum ou Hitler:
Uma seringa. A visão do instrumento odiável enviou calafrios à minha espinha.
Habilmente, Jeff descartou os dois pacotinhos plásticos num receptáculo marcado com o símbolo que indica dejeto hospitalar. Com a mão livre, ele depositou a seringa e o cáteter num banco ao lado.
Sob a névoa do gás, perguntei “…seringa pra que?”
Jeff agora se inclinava por cima de mim, tentando alcançar uma gaveta próxima ao teto da ambulância. Ergui um pouco o pescoço e pude ver que ele estava aparentemente procurando alguma coisa entre o conteúdo da gaveta.
“O problema do gás do riso” explicou Jeff “é que o efeito dele é muito fraco, e a pessoa adquire tolerância rapidamente. Daqui a pouco o efeito sedativo dele vai passar, e suas costas vão doer mais do que estavam doendo antes. E não queremos isso, né?”
Estranhei o tom teatral dele. Imaginei que na faculdade, os caras são instruídos a manter tom informal e amigável com o paciente, pra inspirar confiança e acalmar os acidentados.
Jeff puxou alguma coisa de dentro da gaveta, e eu não consegui ver o que era por causa do ângulo. Ele fechou a gaveta e sentou-se novamente no banco. Aí ele olhou pro objeto em sua mão, se inclinou em direção a mim e o estendeu-o diante dos meus olhos. Era um vidrinho de uns quatro centímetros de comprimento, com lacre metálico em cima.
“É aí que isso aqui entra”.
“Que é isso?” perguntei curioso. Jeff não estava brincando, dava pra notar que os efeitos do gás estava realmente passando. E rápido.
“É um sedativo um pouco mais forte. Ele vai te deixar um pouco tonto e menos alerto ao mundo ao seu redor, mas eu poderia derrubar uma bigorna na sua canela e você não vai sentir nada”.
E sem perder muito tempo, Jeff removeu a proteção plástica do catéter, exibindo a parte pontuda. Ele produziu um algodão do nada e começou a desinfetar as costas da minha mão.
Eu queria protestar o uso da injeção, mas eu não sabia o que dizer. Não queria dar uma de frouxo, mas porra, eu já estava todo fodido. Tive que ser resgatado pelo 911 por ter caído da cama. Todos os meus vizinhos me viram sendo levado pro hospital de cuecas, e eles sabem o motivo. Minhas costas estavam doendo como nunca nenhuma parte do meu corpo doeu. Precisava me furar também?
Mas precisa mesmo?” perguntei temeroso e tentando não transparecer minha mariquice.
“Bom” respondeu Jeff num tom que indicou que minha tentativa foi falha “o efeito do gás vai passar. E quando chegarmos no hospital, você não vai poder ficar andando por lá com o tubo. Vai ter que ser intravenoso mesmo. Relaxa, nem dói”.
Whatever, pensei enquanto ele terminava de desinfetar as costas da minha mão. Olhei pro outro lado enquanto ele enfiava o catéter na minha mão. A sensação de um objeto estranho adentrando a pele não é exatamente dolorosa, é mais é agoniante.
O paramédico em seguida afixou o catéter na minha mão com fita adesiva. Ele então meteu a seringa no vidrinho, sugou uma quantia que julgou suficiente, e deu tapinhas no vidro.
“Ahahaha, igual nos filmes” falei pra mim mesmo em voz alta.
“É pra remover o ar”, explicou o Jeff. E depois conectou a agulha com a saída do catéter, e empurrou o êmbolo.
Cinco segundos depois senti o alívio. Aliás, o alívio foi tão grande que eu tive a impressão de que iria me borrar/mijar todo se não me segurasse. Minha cabeça pendeu pro lado, e eu senti sono. Jeff apanhou o cilindro do gás e o depositou em outra gaveta. Depois descartou a seringa no mesmo lugar onde havia jogado as embalagens.
Olhei pro cáteter. Apertei a pele na área onde o tubinho entrava na minha mão; era estranho sentir aquele troço embaixo da minha pele.
Notei os adesivos que o maluco usou pra firmar o cáteter no lugar. Imaginei o quão doeria pra arrancar aquela porra, que invariavelmente levaria junto todos os pelinhos da minha mão. Pra testar a aderência do negócio e ter uma idéia de quão dolorosa seria sua remoção, arranquei as beiradinhas.
“Izzy, pare de mexer no negócio!” veio a voz da namorada, que estava sentada na frente da ambulância. Eu havia até esquecido que ela estava lá.
“Como é que você está me vendo?”
Jeff apontou pra um círculo plástico afixado acima das portas traseiras da ambulância. Um círculo composto pelo que parecia várias LEDs adornava a circunferência do negócio.
“Tá vendo aquilo? É uma câmera, tem um monitorzinho lá na frente, pra eles saberem o que acontece aqui e tal”.

“Hmmm.”

“Pare de arrancar o negócio!” repetiu a namorada. Ouvi-a dizer pro motorista que eu era “igual criança”.
Deixei o adesivo em paz. Quando essa porra tiver que sair, pensei, foda-se. Vai com cabelo e tudo mesmo.
Poucos minutos após isso, chegamos no hospital.
A ambulância estacionou na parte traseira do hospital, um detalhe que eu só vim perceber quando os paramédicos puxaram minha maca pra fora – não dá pra ver absolutamente nada do mundo exterior quando você está deitado na traseira de uma ambulância.
Cerrei os olhos sob a claridade do ambiente exterior. Quando abri novamente, a namorada tava do meu lado, carregando minhas roupas. Os paramédicos trocaram palavras rápidas e saíram em direções opostas; o Jeff passou a empurrar a maca em direção à entrada. Imaginei que os outros caras tinham alguma papelada pra preencher em relação ao meu resgate.
A maca parou às portas de vidro do hospital. Através da mágica do sensor infravermelho passivo, elas se abriram permitindo nossa passagem.
O cheiro detestável de gente velha e doente permeava o ambiente e ofendeu minhas narinas no instante que entramos no local. O Jeff me empurrou num cantinho do corredor, e em seguida levou a namorada pro balcão, pra fazer o meu check-in ou seja lá qual o termo usado no contexto hospitalar. A namorada colocou as minhas roupas embaixo da maca, fazendo sinal de “já volto”. Ela me deu um beijo na testa e saiu.
Tentei ver onde exatamente ela colocou as tralhas, se estavam apoiadas em algum suporte na parte inferior da maca ou no chão mesmo, mas as drogas que os meus resgatadores injetaram na minha mão impedia de me mover muito, por mais que eu tentasse. Profeticamente, visualizei a namorada vindo pegar minhas roupas e deixando o iPhone cair do bolso da calça. Suspirei enquanto uma velhinha passava lentamente ao meu lado, com uma daquelas haste com uma bolsa de soro intravenoso a tiracolo.
“Eu podia estar twittando isso agora mesmo”, pensei. Imaginei como descreveria a velhinha caquética, de aparente 400 anos de idade, enquanto ela perambulava aparentemente sem rumo na ala de emergência do hospital.
Joguei o braço pro lado da maca, numa tentativa fútil de alcançar o celular que jazia embaixo da maca. Esta ficava a mais ou menos um metro de distância do chão. Não havia chance de alcançar o negócio, caso ele estivesse no chão. Desencanei da porra do celular.
Comecei a imaginar como é que eu explicaria a porra do acidente ao meu chefe, quando fosse requisitar o inevitável dia de folga pra recuperação. Nisso eu ouço a enfermeira no plantão repetir, com aquele tom na voz que deixava claro que ela acreditava não estar entendendo a história.
“Mas ele caiu da cama?”
“Sim”, era a voz da namorada. O ângulo em que me colocaram no corredor não me permitia ver a cena “ele estava arrumando a cama e caiu. Caiu no chão. Enquanto arrumava a cama. Isso.”, ela continuou.
Não dava pra ver a cara da namorada, mas eu consigo imaginar exatamente o semblante que ela esboçou. É tipo aquele quando você trás um sujeito novo pro grupo de amigos, e o infeliz passa a noite inteira fazendo aquelas piadas incrivelmente sem graça que provocam um clima de constrangimento que dura vários segundos.
Em outras palavras, eu imagino que naquele momento ela exibia o clássico olhar “meu deus, que vergonha de me associar com esse retardado”.
“Mas quantos metros de altura tem essa cama?” perguntou a enfermeira. Não consegui distingir se ela usou tom de sarcasmo brincalhão, ou provocativo.
Ouvi uma risadinha sem graça da namorada. Alguns momentos de silêncio, e de repente a menina se materializa do meu lado.
“Já preenchi tudo pra você, já já eles te levam pro atendimento. Como você está?” ela interpelou.
Mas que porra de pergunta ein minha filha” falei. E em seguida, “Já estive melhor”, arrematei, meio arrependido da minha hostilidade. Ela notou que eu coçava a mão furiosamente.
“Pára, menino!” ela falou, puxando meu braço pra longe do catéter. E sim, eu sei que houve uma reforma na língua portuguesa e que “pára” não tem mais acento e blá blá blá por que você não vai chupar uma piroca, ein? Tou contando uma história aqui, caralho.
“Tá coçando demais essa desgraça” falei distraidamente enquanto escaneava o local “vai demorar muito isso aqui?”
“A enfermeira falou que já já vão te levar pro atendimento. Não deve demorar muito”

“Tou com fome. Me dá meu iPhone aí” eu disse, num total non-sequitur.
A namorada se abaixou pra pescar o celular das minhas calças. Ela se levantou com a calça nas mãos, e então eu ouvi o barulho claro de um objeto de plástico caindo no chão e quicando algumas vezes. “Aiii…”, falou a menina.
“Mas puta que o PARIU…” falei baixinho. Uma enfermeira passava perto no momento, me ouviu e fez cara feia. Suspirei e cocei o cateter de novo.
A namorada se abaixou pra pegar o celular. Ela limpou a tela com a blusa, ligou-o e destravou a tela. “Olha, ainda funciona direitim, fica com raiva não amor ^_^”.
Minha mulé é um personagem de anime ambulante.
“Pera que eu vou comprar uma bobagem qualquer pra você comer” ela disse e saiu, certamente tentando me recompensar por ter estatelado a porra do celular no chão.
Apanhei o bicho, abri o cliente de twitter e informei meus amiguinhos de que no momento eu me encontrava fodido e num hospital. A namorada apareceu logo em seguida, com um saquinho de salgadinhos aleatórios.
Poucos segundos depois, apareceu uma enfermeira com uma prancheta na mão.
“Izzy?”

“Opa, é nóis dona enfermeira” foi o que eu não falei. Ao invés disso, eu disse apenas “sim”.
“Opa, tudo bom? Sou a Tracy. Vamos lá” foi o que ela disse, de forma alegre e meio misteriosa. Mas vamos lá ONDE, mulher?
Ela me levou pra uma ante-sala (tem hífen nessa porra? Eu lá entendo dessa merda de reforma) com várias camas separadas por cortinas. Deitei-me em uma das camas, sob olhar cuidadoso da enfermeira lá. Ela fechou uma cortina ao meu redor e falou que um médico iria me atender em breve.
Nisso eu pensei naquela tal responsabilidade jornalística que eu vivo mencionando, e decidi que seria uma boa hora de imortalizar aquele dia de merda em formato .jpg. Eis as imagens:
Fiquei lá sozinho com meus pensamentos e meus salgadinhos (que eram uma merda, já que você pergunta), apesar da orientação da enfermeira de que eu não deveria comer nada antes de ver o dotô. Talvez seja por isso que eu fiquei meio envergonhado quando uma segunda enfermeira veio falar comigo e esboçou claro desgosto ao me ver ignorando a orientação da outra.
“Você tem alguma alergia?” ela foi direto ao ponto, sem o usual bom humor que parece uma constante na galera da profissão médica. Não pude deixar de notar que a mulé era estonteante. O cabelo loiro dela tava preso, aquele glorioso rabo de cavalo balançando atrás dela. O jaleco dela era modesto, mas os traços de mamas gloriosas eram claramente visíveis por baixo dele.
O que estou querendo dizer é que a mulé parecia uma enfermeira, sim, mas o tipo que estou acostumado a ver em formato Divx com uma URL do naughty-america.com no cantinho inferior direito.
Pensei tudo isso antes de responder “não, nenhuma alergia”. Ela fez uma anotação numa pranchetinha.
Toma algum medicamento controlado?” porra, a mulé precisa usar esse tom de descaso? Que escrotinha. Ou estaria apenas de mal humor naquele dia específico? Jamais saberei.
“Não, nenh…”

“Seu endereço é (…)?”

“Isso”
“O doutor vem ver você já já” ela disse, colocando a pranchetinha numa prateleira. E se virou pra ir embora, me lembrando mais uma vez por que eu adoro a Lululemon.
Lululemon é uma grife local que faz roupas esportivas. A despeito do preço ridiculamente abusivo (calças da Lululemon custam na faixa de 150 dólares, enquanto calças idênticas porém com outros logos se encontram por menos de 30), a marca é extremamente popular aqui na cidade.
Esse é o tipo de roupa que eles vendem.
E era isso que a enfermeirinha estava trajando.
Minutos depois o médico aparece. O cara mal olhou pra mim; ele devia ter ouvido a história da cama e concluído que eu não poderia estar tão machucado assim. Ele me entregou uma cartela de Oxycontin, um poderoso analgésico, e uns papéis explicando sobre o quão perigoso o tal medicamento é, porque aparentemente vicia com muita facilidade.
Tomei uns ali mesmo, curioso sobre o efeito do famoso remédio. Nunca fui muito de experimentar drogas, então imaginei que seria uma reação interessante.
E como foi. Ao longo dos próximos 5 dias, sempre que as costas começavam a doer mais, eu metia um comprimido na goela. Em questão de minutos, tava LOMBRANDO. A reação inicial era uma de sono; eu me sentia sonolento, mas não estava realmente com vontade de dormir. Em seguia vinha um alívio fortíssimo pelo corpo inteiro, a melhor forma de descrever a sensação é dizendo que dava a impressão de que se eu não me controlasse ativamente, me mijaria, cagaria e gozaria todo se desse o menor espirro.
Trevor – como bom amigo filho da puta que é – já havia contado pra todos os nossos colegas de trabalho sobre como eu me acidentei ARRUMANDO A CAMA, e jazia caído no chão de cuecas, na mais triste figura, esperando ser socorrido por paramédicos.
E sempre que algum colega de trabalho que ainda não havia ouvido a história me perguntava como eu me acidentei, eu me lembrava do conselho que dei no começo desta série – se você for se acidentar, tente não se acidentar de forma vergonhosa.
E pra tornar a coisa ainda mais engraçada (pra vocês), anteontem chegou a conta da ambulância. O plano de saúde federal cobre tudo, MENOS viagem de ambulância.
Conta de 351 dólares. Com 10 dias pra pagar.

Nenhum comentário: